A Real Pain
Drama
Roteiro e Direção: Jesse Eisenberg
Com Kieran Culkin e Jesse Eisenberg
EUA, 2024
Dois primos viajam para a Polônia para conhecer lugares importantes para a história judaica e se despedirem de sua recém falecida avó.
Eis aqui um filme cujo roteiro é fascinante, justamente por não obedecer aos cânones da narrativa clássica, ao paradigma de Syd Field ou a qualquer outra estrutura pré-concebida. Não que a história seja assim tão original, é apenas uma história simples e bonita.
O filme não possui um incidente incitante, muito menos um clímax. Porém, é possível identificar seus 3 atos. Afinal, como afirma David Mamet em seu livro Os Três Usos da Faca, tudo tem começo, meio e fim, é assim que ordenamos nosso pensamento. Então vamos lá.
PRIMEIRO ATO
A primeira imagem do filme mostra Benji (Kieran Culkin), o protagonista, sentado calmamente numa cadeira de aeroporto, observando as pessoas ao seu redor. Enquanto isso, David (Jesse Eisenberg, coprotagonista), bastante acelerado, entra num taxi e manda seguidas mensagens de áudio para seu primo, imaginando que o mesmo irá se atrasar para o voo.
Como sempre, o primeiro ato serve para apresentar os personagens, o que o roteiro faz questão de fazer desde o seu início. Até porque o filme se baseia na tensão gerada pela diferença de personalidade entre os dois protagonistas, um recurso bastante usado, afinal, uma história precisa de conflito.
Benji nos conquista logo de cara, assim como as pessoas com quem interage. Simpático, carismático, expressivo, espontâneo e se veste de forma “descolada”. Ele é tudo que todos gostariam de ser. Apenas no segundo ato serão reveladas as características negativas que fazem “parte do pacote”. David é quase seu oposto, não que seja antipático, mas é tímido, introvertido, inseguro, pragmático, nada espontâneo. Se veste mal, sempre abotoando apenas o segundo botão da camisa.
Apesar das diferenças, os primos se gostam. Depois de uma infância de intensa convivência, que consolidara a uma verdadeira amizade, ambos andam afastados. David deu rumo à sua vida pessoal e profissional. É casado e tem um filho. Benji parece ter parado no tempo, característica ressaltada pela primeira imagem do filme.
INCIDENTE INCITANTE
Já mencionei que o filme não tem esse ponto fundamental do roteiro. O que acontece é que este evento não aparece no filme, pois acontecera antes de começar a história. O motivo que leva os primos à Polônia é a morte de sua avó, acontecida há 6 meses. O que levou Benji e um sério processo de depressão.
Um filme que obedecesse a narrativa clássica mostraria, talvez, cenas dos dois protagonistas na infância. Cenas de ambos vivendo suas vidas adultas. Até que seriam impactados pelo falecimento da avó. Os dois poderiam se reencontrar no enterro e combinarem a viagem.
Mas aqui não, o falecimento da avó é apenas mencionado. E há um motivo que justifica essa escolha. Geralmente o incidente incitante “tira do lugar” a vida dos personagens, que adquirem questões, problemas a serem resolvidos. E essas questões são resolvidas muito claramente em um momento muito preciso, o clímax do roteiro.
Contudo, o sofrimento causado pela perda de alguém muito querido, não se resolve de uma hora para outra. Dependendo das circunstâncias, da proximidade entre as pessoas, do momento da morte, esse processo pode se encurtar ou se alongar.
No caso de David, aparentemente, os 6 meses que se passaram já foram suficientes para o luto se concretizar. Afinal ele tem uma família, um emprego, responsabilidades, obrigações. Porém Benji ainda está claramente enlutado, sentindo bastante falta das conversas semanais que tinha com a avó. Por isso ele é o protagonista do filme. É ele quem deve passar por um arco de transformação. Nesse caso, não de transformação de personalidade ou comportamento, mas apenas a superação da perda de um ente querido.
SEGUNDO ATO
Os amigos chegam à Europa e se juntam à um pequeno grupo de turistas, todos judeus. Um casal por volta dos 60 anos, uma mulher recém separada, um pouco mais nova, e um rapaz por volta dos 40, idade próxima à dos primos. Esse último, curiosamente nascido em Ruanda e convertido ao judaísmo. Além do guia um rapaz mais novo, muito profissional e muito prestativo. Temos aí, várias gerações representadas.
Já na apresentação aos outros integrantes do grupo, Benji se destaca, falante, a curiosidade sobre as histórias de vida de seus colegas é interpretada por David como intromissão, deixando-o um tanto constrangido.
Uma impressão que o filme pode dar, por ser algo comum nesse tipo de história, é que os dois amigos/primos, por terem comportamentos muito distintos, às vezes extremos, irão se moldando um ao outro e terminarão no meio do caminho. Num equilíbrio considerado “adequado”.
Mas essa é outra característica que costuma distanciar o cinema da vida real. As pessoas não mudam drasticamente de comportamento, pelo menos não em tão pouco tempo. A viagem dura algo em torno de uma semana. Portanto, os rapazes passam por situações inusitadas, constrangedoras, engraçadas, tristes, até catárticas. E vão lidando com isso da maneira que podem.
Dessa forma, o filme faz uma reflexão sobre diferentes posturas diante da vida. É praticamente inevitável escolhermos Benji para um modelo de comportamento no começo do filme. Mas o segundo ato nos mostra que as coisas não são assim tão simples. Temos aí mais um mérito do roteiro, pois os personagens são muito bem construídos, ambos têm qualidades, defeitos, contradições, enfim, suas idiossincrasias. Afinal, David não é todo “certinho”, ele fuma maconha e dá calote em um trem (é verdade que ambas as atitudes por influência do primo).
Destacam-se algumas cenas. A mais engraçada, diante de um monumento de guerra que proporciona uma foto inusitada, dirigida por Benji e fotografada por David, que não quis aparecer. Situações despertam gatilhos em Benji, como o fato de andar na primeira classe de um trem. Ou uma animada conversa em um restaurante, que muda do vinho para a água assim que Benji desabafa causando desconforto aos demais. Nesse ponto, David faz uma importante revelação. E a cena termina de forma surpreendente e bonita.
Outro bom momento são as críticas veementes ao guia, que vomita mais e mais informações no meio do cemitério mais antigo da Polônia. O que é interpretado por Benji como um certo desrespeito às pessoas enterradas ali. E é inevitável que todos sejam afetados ao visitarem o campo de extermínio de Auschwitz.
O segundo ato prossegue expondo os protagonistas à diferentes situações, recorrendo aos outros integrantes do grupo para marcar suas personalidades. O senhor mais velho logo fica contrariado com as atitudes de Benji, enquanto os outros tentam ser mais compreensivos.
TERCEIRO ATO
(aqui serão reveladas situações do fim do filme, mas entendo que isso não irá prejudicar a experiência de assisti-lo, não configurando um spoiler)
Para chegarmos em algo próximo a um clímax, o roteiro precisa isolar os protagonistas do resto do grupo. Os rapazes seguem sozinhos para conhecer a casa onde a avó morou em sua infância.
Sozinhos no quarto de hotel, no seu terraço, ou andando pela cidade, ambos têm mais conversas, desabafos, brigas e reconciliações. O que pode ser entendido como clímax é o momento em que chegam diante da casa da avó. Porém o filme é extremamente realista.
Outra cena “um tanto climática” e engraçada, ocorre no aeroporto quando os primos se despedem. E o filme termina com uma bela imagem, altamente significativa, que se relaciona com a sua primeira imagem e diz muito sobre a evolução do processo de luto e superação de Benji.