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26/02/2025
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ArticulistasMarcos De Bona

Ainda Estou Aqui – Um belo retrato da crueldade da ditadura militar e da luta de Eunice Paiva

Foto: Reprodução

Drama / Baseado em Fatos

Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção: Walter Salles.
Com Fernanda Torres, Selton Melo, Fernanda Montenegro, Valentina Herszage, Bárbara Luz, Luiza Kosovski, Guilherme Silveira e Cora Mora.

Brasil, 2024.

Vídeo:

A casa da família Paiva é de uma alegria contagiante. Frequentada por muitos amigos, parentes e pelos 5 filhos de Rubens e Eunice. De repente, essa alegria se acaba.

É com muito orgulho que escrevo o texto sobre Ainda Estou Aqui, provavelmente o melhor filme brasileiro produzido nos últimos 8 anos. Desde Aquarius (2016, dirigido por Kleber Mendonça Filho), não há um filme brasileiro fazendo uma carreira tão bem-sucedida em festivais internacionais.

Foi o ganhador do prêmio de roteiro no Festival de Veneza, para a dupla Murilo Hauser e Heitor Lorega. E ganhou a votação popular como melhor filme no festival de Toronto, no Canadá. E, depois de 25 anos, o Brasil pode voltar a ter um representante no Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional. O último havia sido Central do Brasil, de 1999, também dirigido por Walter Salles, que teve Fernanda Montenegro como protagonista. Depois disso, filmes brasileiros também foram indicados em outras categorias como: Cidade de Deus, de 2004 (Direção, Roteiro, Edição e Fotografia); O Menino e o Mundo, de 2016 (Animação) e Democracia em Vertigem, de 2020 (Documentário). De qualquer forma, o filme é maravilhoso e já teve bastante reconhecimento ao redor do mundo, se não ganhar o Oscar, azar do Oscar.

O Roteiro é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos filhos de Eunice e Rubens que passou por todo aquele pesadelo junto com a sua família. O livro é igualmente excelente, conta as memórias do autor, acontecimentos deliciosos desde sua infância e juventude, até a velhice de sua mãe, quando ela sofreu com o Mal de Alzheimer.

A ditadura militar é um assunto muito sério, que jamais pode ser esquecido, foram mais de 350 mortos e desaparecidos políticos. E recentemente, a democracia brasileira sofreu graves ameaças, como a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, liderada por Jair Bolsonaro, que deveria ser preso por isso e por outros motivos. Escrevo no dia seguinte ao atentado suicida na Praça dos Três Poderes, em que um homem explodiu um carro nas imediações da Praça e em seguida detonou uma bomba no próprio corpo.

O cinema brasileiro já produziu clássicos como O Que é Isso Companheiro, Batismo de Sangue, Zuzu Angel, Marighela e filmes mais recentes como Ainda Somos os Mesmos e Entrelinhas.

PRIMEIRO ATO

Se há um roteiro com um primeiro ato exemplar, é esse aqui. O Incidente Incitante também é evidente e o contraste com o segundo ato é muito claro. Estamos no Rio de Janeiro em 1970. Somos apresentados à família Paiva, composta por Rubens (o protagonista), um ex-deputado caçado, sua mulher Eunice e seus 5 filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lucia, Marcelo e Maria Beatriz. O filme insere imagens captadas em super 8 (uma câmera antiga que faz imagens granuladas com cores vivas) para retratar a alegria permanente na casa dos Paiva. Um entra e sai constante de familiares, amigos e dos cinco filhos na casa localizada próximo à praia do Leblon. O primeiro ato do filme nos coloca muito próximos daquelas pessoas. Os personagens são cativantes, principalmente Rubens Paiva, numa interpretação marcante de Selton Melo, mesmo com o seu personagem aparecendo apenas no começo do filme.

Mas apesar de toda essa alegria, a família está longe de ficar alheia aos horrores da ditadura. Rubens não está envolvido com luta armada, mas ajuda pessoas perseguidas pelos militares, entregando cartas de parentes exilados. Porém faz isso muito discretamente, tanto que Eunice e os filhos são quase proibidos de entrar no escritório do ex-deputado. Além disso, todos estão bem atentos às notícias na tv, que relata mais um sequestro de um embaixador que seria trocado por presos políticos. Situação bem retratada em O Que é Isso Companheiro? (1998, também indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro), que aliás, também tinha Selton Melo e Fernanda Torres no elenco.

Voltando ao filme, vemos Veroca, a filha mais velha do casal, sendo parada numa blitz junto com amigos, todos desrespeitados pelos militares, que agem de forma bastante truculenta. As filhas mais velhas já estavam se envolvendo com o movimento estudantil. Por precaução, os pais mandam Veroca para Londres. A própria Eunice dá a ideia de toda a família ir junto, mas Rubens, que já tinha sido exilado, acha que ainda dá para ficar aqui no Brasil.

Portanto o primeiro ato nos mostra que, por mais que essa família pareça muito alegre, era impossível ficar tranquilo naquela época. Porque a qualquer momento poderia acontecer o que vem a seguir.

INCIDENTE INCITANTE

No dia 20 de janeiro de 1971. Militares armados com metralhadoras aparecem na casa dos Paiva e levam Rubens para prestar depoimentos. A partir daí, a casa se torna silenciosa e sombria. Os militares permaneceram mais alguns dias por lá, Comendo a comida oferecida por Eunice e escutando os telefonemas em uma extensão. No livro, Marcelo conta que sua mãe avisou os amigos e parentes para não aparecerem lá, porque eles também poderiam ser presos. No dia seguinte, os milicos levam a própria Eunice e Eliana, uma das filhas, para as dependências do DOI Codi. Elas ficam nos corredores com os rostos cobertos por um capuz. Eliana volta para casa no mesmo dia, mas Eunice fica presa por uma semana. Ela não foi fisicamente torturada, mas a todo momento ouvia os gritos dos outros presos. E todo dia passava pelo mesmo interrogatório, quando tinha que reconhecer pessoas em um álbum de fotos, supostos inimigos da ditadura.

A partir do momento em que ex-deputado é preso, o filme muda de protagonista. Se no primeiro ato era o Rubens, no segundo ato, a protagonista passa a ser a Eunice. E o filme vai contar a história dessa mulher, que ajudada pelos amigos, faz de tudo para libertar o seu marido. Enquanto isso, a família vai se acostumando com a ausência de Rubens. E Eunice tem que se virar para ganhar dinheiro e para criar os cinco filhos sozinha.

ADAPTAÇÃO

Quando um filme é adaptado de um livro, os roteiristas têm que fazer algumas escolhas, porque o livro todo não vai caber em 2 horas de filme. A primeira metade é concentrada por volta da época em que o Rubens Paiva foi preso. Até o momento em que a família deixa a casa no Leblon e vai morar em São Paulo.

Algumas passagens aparecem no filme, mas não no livro. Como o cachorro Pimpão, que foi adotado pela família. Uma criação dos roteiristas para tornar a família ainda mais simpática. Mais para frente, o cachorro vai estar envolvido em uma cena que mostra a força de Eunice. E naturalmente há passagens do livro que não foram possíveis colocar no filme. Como o momento, logo após às prisões de Rubens e de Eunice. Os amigos do casal temiam que algo pudesse acontecer com os filhos, por isso cada um foi mandado para um local diferente. Marcelo ficou em uma casa em Araras, na região serrana do Rio de Janeiro.

Então o filme dá alguns saltos no tempo e conta a trajetória de Eunice. Que conseguiu se transformar, superar a ausência do marido, criar os cinco filhos e se tornar uma importante ativista das causas indígenas.

E o terceiro ato vai mostrar como aquela família continuou unida e resiliente, apesar de ter passado por um grande trauma. Mostrando que, por mais que os militares tentassem impor suas ideias, a democracia venceu. Muitas famílias ficaram marcadas e choraram seus mortos e desaparecidos. Alguns danos infelizmente foram irreversíveis. Mas em geral, o país redescobriu que a democracia pode não ser perfeita, mas é o melhor regime a ser adotado. E o cinema, quando feito com a paixão que percebemos aqui, não nos deixa esmorecer.

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