Cinco anos desde o primeiro caso da covid-19 no Amazonas pode parecer muito tempo para quem não perdeu um parente, mas, para os enlutados, é um trauma vivido como se fosse hoje. Entre a dor da perda, está outra ferida latente: a sensação de que a pandemia que matou mais de 14 mil amazonenses está caindo no esquecimento.
A professora de história Carla de Oliveira Lima perdeu o pai, José Carlos Rosas de Lima, a mãe, Luiza de Oliveira Lima, e o irmão, Lean de Oliveira Lima, todos vítimas da Covid-19. No caso da mãe, a crise de falta de oxigênio em janeiro de 2021 agravou seu quadro de saúde enquanto enfrentava a doença.
“É um apagamento da memória proposital”, diz ela, sobre a inexistência de um espaço em Manaus dedicado às vítimas da covid-19, cinco anos após o primeiro caso da doença. “É proposital, porque aí teria de se apurar as responsabilidades disso, quem estava no poder na época e era responsável pelo que aconteceu”, comenta.
Carla cita a importância de um espaço que mantenha viva a memória do episódio como forma de ensinamento às futuras gerações, e faz um paralelo. “É como quando se retoma a história da ditadura militar. É algo que não pode ser esquecido. Foram mais de 700 mil mortos, é como se fosse uma guerra. E foram muito mais casos, porque a certidão de óbito deles [dos pais] não constava covid-19. Aconteceu com muitos”, diz.
O sentimento de que a história está sendo deixada de lado é compartilhado pela socióloga Lucinyer Omena, que perdeu o filho, o geógrafo Daniel Tiago Omena Melo, em 2021. Assim como outros parentes de vítimas, ela sofre novamente ao falar sobre o que aconteceu, um sinal de que a memória da pandemia segue viva para os mais impactados.
“É como se ninguém quisesse falar sobre o que aconteceu. O quarto do meu filho está lá até hoje, do jeito que ele deixou, me lembrando da ausência dele”, relata. Daniel trabalhava com geoprocessamento no cemitério, onde foi infectado quando não estava no grupo considerado prioritário para se vacinar. “Ele trabalhava na linha de frente e não teve o direito”, diz Lucinyer.
Pesa para a socióloga uma falta de esperança em relação a uma possível responsabilização ou o cuidado com a memória das vítimas. “Assisti aquela CPI da Covid, presidida pelo senador Omar Aziz, e no que deu? Nada. Ele perdeu o irmão para a covid. O prefeito David Almeida perdeu a mãe. Ainda pode partir deles iniciativa para um memorial”, afirma.
Cobrança
Carla e Lucinyer são duas entre mais de 1,4 mil brasileiros que se cadastraram na Associação Nacional das Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), fundada em 2021. Desde a sua criação, a entidade ainda oferece suporte aos enlutados e cobra a preservação da memória de tudo o que ocorreu.
Pacientes de Manaus tiveram que ser transferidos para outros estados para que tivessem atendimento.
“Uma das iniciativas da entidade é pressionar o Estado para que se responsabilize por fazer os memoriais nas unidades da federação, nas cidades onde a população se sentir confortável com isso, porque é uma decisão também dos habitantes. Mas é preciso que essa opção exista”, comenta Rosângela Silva, presidente da Avico.
“Tivemos entrega de documentos com a solicitação do memorial a partir do Ministério da Saúde e do Ministério dos Direitos Humanos. Ainda hoje continuamos acompanhando para cobrar”, acrescenta.
Rosângela diz que chegou na Avico por participar do que considera três esferas da pandemia. “Eu perdi o meu pai para a covid-19, sou trabalhadora da saúde, trabalho em um hospital que, no período, era referência para a doença, e fui acometida pela doença em 2020”.
É pelo que passou em todas essas situações que defende a existência de um memorial não apenas em um lugar, mas em diferentes cidades – incluindo Manaus.
“A reparação é importante. A responsabilização tem nome, houve uma política de Estado que foi pensada e colaborou para que tivéssemos 700 mil vítimas fatais e um número incontável de sequelados. O Estado brasileiro ainda não deu as respostas para essas pessoas para o que precisavam. Manaus ainda não recebeu as respostas que precisava”, afirma.
Fora dos planos
À reportagem, o Ministério da Saúde informou que ainda não há planos para a elaboração de um memorial relacionado às vítimas da covid-19, em Manaus. Em maio do ano passado, os Ministérios da Cultura e Saúde anunciaram a criação do Memorial da Pandemia de Covid-19. O espaço será instalado no Centro Cultural do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro.
Conforme o anúncio, o espaço deverá abrigar uma exposição de longa duração que relate os episódios marcantes da pandemia, desde as primeiras notícias ao lockdown, os estudos científicos para o conhecimento do vírus e as mortes, mas também momentos de êxito e descoberta, como as primeiras vacinas.
A reportagem também procurou a prefeitura de Manaus e o governo do Amazonas para questionar sobre possíveis intenções para a criação de um memorial no estado, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Impactos
Professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Simoni Junior desenvolveu estudos sobre o impacto da pandemia na sociedade brasileira. Um dos aspectos que lhe chama a atenção é a sensação, à época, de que o mundo seria mais solidário depois da pandemia. Na visão dele, a realidade não correspondeu à expectativa.
“Havia uma percepção de que as pessoas seriam mais solidárias, que mudariam os hábitos, particularmente de atenção, cuidados com outras pessoas, porque a pandemia ensejou isso também, pessoas que não podiam sair, tinham comorbidades ou outras dificuldades. Na minha impressão, isso não mudou tanto após a pandemia” diz.
Outras duas áreas nas quais o pesquisador enxerga mudanças são a saúde e a educação. “O sistema de saúde ficou um pouco mais atento com relação a epidemias, pandemias. Talvez não da forma que se imaginava, mas o sistema ao redor do mundo ficou mais atento para não ser pego de surpresa”.
“Outro aspecto é o geracional. Pessoas que estavam em um momento escolar, em 2020, 2021, que passaram para o ensino remoto, sentiram muitas consequências. Essas pessoas têm um ensino um pouco mais defasado em comparação às que não passaram por isso. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos mostrou isso, comparando regiões que demoraram para voltar ao presencial nas escolas”.
Do ponto de vista da memória, o professor diz que um memorial é importante não somente por um lado simbólico, mas também por um âmbito prático. “Unindo os dois, representa um acolhimento, um reconhecimento para os familiares das vítimas. Então, o poder público ou entes privados fazendo seus espaços de memória dão um simbolismo importante e prático, porque nos lembra da importância de termos sistemas de saúde, de prevenção e de cuidado para doenças coletivas”.
Histórico
O primeiro caso de covid-19 no Amazonas foi confirmado em 13 de março de 2020, sendo uma mulher de 39 anos que havia chegado de uma viagem da Europa. Poucos dias depois, em 24 de março, o estado registrou a primeira morte oficial, o empresário Geraldo Sávio, 49, em Parintins, a 369 quilômetros de Manaus.
*Fonte: Acrítica