Em Manaus, indígenas comemoraram a decisão do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que facilita a inclusão de suas etnias no registro civil em cartório como parte do sobrenome. Para a artista Thaís Kokama, a modificação “é um marco muito importante” para os povos indígenas, não apenas pela questão burocrática, mas também pelo “reconhecimento da nossa identidade, da nossa ancestralidade”.
“Por muito tempo, a sociedade e as instituições tentaram apagar quem somos, nos obrigando a adotar nomes que não carregam a força da nossa origem. Esse direito nos devolve parte do que sempre foi nosso: o pertencimento, a visibilidade e a afirmação de que existimos e resistimos. Além disso, retirar a exigência do RANI [Registro Administrativo de Nascimento Indígena] para esse reconhecimento é fundamental, pois sabemos que muitos indígenas não possuem esse registro por diversas razões, mas nem por isso deixam de ser indígenas”, destacou.
Thaís ressalta que o critério de autodeclaração e o reconhecimento pela própria comunidade, o qual é utilizado pelo Estado Brasileiro para classificar uma pessoa como indígena, respeita a forma como as populações sempre se organizaram e identificara, sem necessidade de validação externa.
“Essa medida impacta diretamente as novas gerações, garantindo que possam crescer carregando no próprio nome a história de seus ancestrais. Influencia também o reconhecimento de direitos coletivos, fortalecendo nossas lutas por território, cultura e autodeterminação. É um passo significativo, mas sabemos que ainda há muito a ser conquistado. Seguimos firmes, afirmando nossa existência e garantindo que nossas vozes sejam ouvidas”, concluiu.
A enfermeira e ativista Vanda Witoto, uma das poucas candidatas indígenas em Manaus nas eleições de 2024, afirmou que esse é um momento histórico para os povos indígenas, “tendo em vista que, historicamente, nos foi negado o direito de ter os nossos nomes indígenas em nossos documentos”.
“Para nós, isso é um avanço importantíssimo de reparação histórica, porque a reafirmação da nossa identidade perpassa por esse reconhecimento de quem somos enquanto povos originários. A nossa identidade se atravessa dentro desse processo de pertencer ao nosso povo. Apesar de tardio esse reconhecimento, ele é um avanço na luta. A gente pode hoje ter esse direito garantido”, disse.
Ela também destacou a retirada da exigência do Rani, apontado como um mecanismo do Estado “para negar os nossos direitos”. Emitido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), órgão criado pela ditadura militar, o documento possui uma série de critérios estritos para definir quem é indígena e quem não é.
“Eles diziam quem era indígena, e a retirada desse mecanismo é muito importante, porque muitos de nós, hoje, não acessamos nossas políticas porque não temos o Rani. As pessoas indígenas do território não têm o Rani muitas das vezes. Então, certamente isso cria um mecanismo de autonomia para os povos se afirmarem, esse processo é necessário”, explicou.
Vanda Witoto relembrou que atualmente a Funai é presidida por uma mulher indígena, a advogada e ex-deputada federal Joênia Wapichana. Em sua gestão, o órgão emitiu uma portaria que determina às universidades públicas e privadas que não exijam o Rani para conceder acesso a políticas públicas direcionadas a estudantes indígenas.
Esse é um passo importante para avançar em outros mecanismos, como o processo de heteroidentificação de cotas sem a necessidade do Rani, mas com o envolvimento da comunidade indígena para reconhecer o estudante como parte do povo.
“Nossos povos lutam há mais de cinco séculos para que esse direito de autonomia, autodeterminação, autoafirmação, autodemarcação dos seus territórios sejam garantidas. A Justiça tem feito um esforço de olhar para essas populações e garantir os seus direitos diante da luta dos nossos movimentos indígenas, das nossas organizações, dos nossos advogados indígenas que hoje ocupam esses espaços da Justiça”, concluiu.
Apagamento
O professor João Paulo Lima Barreto, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), afirmou à reportagem que uma das maiores estratégias de apagamento da presença indígena é justamente a substituição de seus nomes originais pelos colonizadores, seja “via Estado, via religião, via educação”.
“Todos os lugares que os povos indígenas tinham como seus nomes próprios, os lugares territoriais, foram substituídos pelos nomes europeus. Inclusive, as comunidades que tinham nomes próprios dos povos, na língua própria, foram colocados nomes em português, holandês, os colonizadores que chegaram. Da mesma forma, também fizeram isso com os povos indígenas, dando os nomes europeus para apagar os nomes dos povos”, disse.
Além disso, há o problema de o Estado brasileiro ter criado denominações para os povos que não condizem com a forma com as quais eles se identificam. O professor pertence ao povo Tukano, que se identifica em sua língua como Yepá-Mahsã.
“Ou seja, uma das estratégias também de apagamento foi via pesquisa, em que os pesquisadores, sobretudo os antropólogos, começaram a criar categorias de nominação para os grupos sociais indígenas, apagando seus próprios nomes. Eu sou do grupo Yepá-Mahsã, o pessoal deu o apelido de Tukano. Portanto, essa notícia [a resolução do CNMP] para nós é muito importante nesse sentido”, afirmou.
*Fonte: Acrítica