Suspense / Drama / Ação
Roteiro: James Watkins, Mads Tafdrup e Christian Tafdrup.
Direção: James Watkins.
Com James McAvoy, Mackenzie Davis, Scoot McNairy.
EUA, 2024
(estreou nos cinemas em 12/09/2024)
Vídeo: https://youtu.be/1rQzXVkj3-8?si=COxO9DbMM0B_ndPC
*Esse texto, assim como o vídeo acima, não tem spoilers.
Pai, mãe e filha conhecem outra família muito simpática, e vão passar um fim de semana em sua deliciosa casa de campo. Mas o que acontece lá não é tão delicioso assim.
Não Fale o Mal é a adaptação de um filme homônimo dinamarquês de 2022, com o roteiro escrito pelos irmãos Christian e Mads Tafdrup e dirigido por Christian. Os irmãos também levam os créditos na versão americana juntamente com James Watkins, diretor do novo filme.
Trata-se de um bom filme, possui algumas semelhanças com Pisque Duas Vezes que também tem post aqui no Portal. Porém a trama de Não Fale o Mal é um pouco mais verossímil, ainda que com atitudes drásticas dos personagens.
Nesse texto vou chamar atenção para certos eventos que acontecem no primeiro ato e começo do segundo ato. Explicando algumas técnicas usadas pelos roteiristas. Por isso não teremos spoiler.
Na Primeira cena do Filme, um carro anda por uma estrada escura, vemos as costas de um homem e de uma mulher, o espelho retrovisor reflete os olhos de um menino. Ou seja, o filme nos coloca dentro do carro e sob o ponto de vista do menino. Quando uma imagem aparece num espelho, podemos interpretar como algo que está invertido, enviesado ou simplesmente errado. Depois vamos descobrir que aquele menino não fala, por isso, se comunica muito pelo olhar.
Os Protagonistas são Ben e Louise, que têm uma filha chamada Agnes. O roteiro vai tratar de duas famílias. Essas famílias têm uma interação bastante peculiar, por causa da outra família formada por Paddy (o pai), Ciara (mãe) e Ant (filho). No começo tudo parece correr muito bem, mas coisas estranhas já começam a acontecer.
O Paddy se revela desde já um personagem camaleão. Não é que ele começa como antagonista e termina como aliado, por exemplo. Ele muda o tempo todo, ao mesmo tempo que é muito simpático e carismático, é especialista em deixar os outros desconfortáveis. E muitas vezes, o desconforto vira constrangimento!
PRIMEIRO ATO
Na segunda sequência do filme acontece a apresentação dos protagonistas. A cena se passa na piscina de um hotel, Ben e Louise estão na beira da piscina, Agnes quer entrar na água, mas Louise não deixa.
Temos a primeira interação entre as duas famílias. Paddy aparece pedindo uma cadeira vazia que está ao lado de Ben, ele titubeia, mas cede, e tira um coelhinho de pano de cima da cadeira (já vou falar mais sobre esse coelhinho).
Para concluir a primeira interação entre as famílias, Paddy sai arrastando a cadeira, fazendo barulho. Logo em seguida pula na água e joga Ant na piscina. Fazendo Louise ficar sem graça.
Então temos a apresentação do MACGUFFIN, um dispositivo do enredo, geralmente na forma de um objeto que ganha uma importância muito maior do que ele deveria ter. Quem sempre baseava seus roteiros em MacGuffin era Alfred Hitchcock.
Pouco depois, a família protagonista está passeando e a Agnes fica desesperada porque perdeu o coelhinho de pano. E esse coelhinho é o MacGuffin, parece um objeto insignificante, mas em um momento específico ele é muito decisivo.
Voltando à cena, o pai fica chateado e a mãe fica preocupada. Mas quem acha o coelhinho? Paddy, na primeira interação positiva entre as famílias. As famílias se apresentam formalmente e, muito simpático, o Paddy apresenta Ant (o menino que não fala). Depois de ver o filme, podemos suspeitar que o próprio Paddy havia “roubado” o coelhinho.
Mas Paddy se mostra um cara ainda mais legal quando convida a Agnes para dar um passeio de vespa, os pais dela ficam um pouco desconfortáveis. Nessa hora, ele também mostra um grande poder de persuasão, aliás, de manipulação, muito característico do seu personagem. Ele sai com a moto bem devagarinho, e volta correndo.
Mais cenas intrigantes do Paddy: Ben está conversando com um casal dinamarquês muito chato, Paddy olha para ele e simula um suicídio. O casal dinamarquês reaparece e Paddy os espanta com uma história absurda, bastante bizarra. Porém nessa hora, Ben e Louise também se divertem e riem do casal dinamarquês, demonstrando que eles aceitam de certa forma aquele jeito peculiar do Paddy. Quando é com os outros está tudo certo. Mas quando acontecer com eles…
INCIDENTE INCITANTE
O importante mesmo é quando o Paddy convida a família de Ben a passar um tempo na sua casa. Esse pode ser considerado o Incidente Incitante do roteiro.
Ainda no primeiro ato, a paisagem ensolarada da Itália é substituída pela chuvosa Londres, simbolizando os conflitos que aparecem entre o casal. Ben não consegue um emprego, apesar de ter convencido Louise a largar tudo nos EUA e se mudar para a Europa. Ben não gosta que a filha de 12 anos durma com o coelhinho. Mas Louise, mãe, (super)protetora, não quer magoar a filha. Por fim, Louise não quer ir para a casa de Paddy e Ciara, mas Ben insiste e convence a esposa.
Ou seja, ela está sempre fazendo as vontades do marido. Mas o fim do filme a revela como, de fato, a protagonista, pois é ela quem tem uma atitude mais decisiva, enquanto o marido fica apavorado e sem ação.
O convite do Paddy é o Incidente Incitante. Mas uma característica essencial nesse tipo de roteiro é justamente não ter um evento tão marcante, que muda radicalmente as perspectivas dos personagens. Nesse ponto ele é bem parecido com o já citado Pisque Duas Vezes.
SEGUNDO ATO
Ben, Louise e Agnes chegam na casa de Paddy e Ciara e as coisas estranhas vão acontecendo bem aos poucos. Paddy mostra a sua personalidade de camaleão, alternado entre atitudes simpáticas e estranhas. Estranhas o suficiente para causar desconforto, mas não para afugentar as visitas.
Um detalhe que não passa despercebido é o figurino de Ant, sempre a mesma roupa de futebol americano, uma forma de desumanizar o personagem. Os roteiristas usam esse artifício para aplicar a técnica de foreshadowing. Como o Ant parece gostar de futebol americano, a família do Ben dá uma bola de presente para ele. Essa bola aparentemente não tem função narrativa, mas vai ser importante mais para frente.
Paddy e Ciara continuam a rotina de constranger os visitantes. Começam colocando a Agnes para dormir no quartinho do Ant, numa caminha no chão. Ele faz a Louise comer carne de ave, “esquecendo” que ela é vegetariana. Convida todo mundo para tomar banho de cueca. Fala de sexo no restaurante causando uma cena super constrangedora.
E quando todos estão saindo do restaurante, Paddy causa mais um constrangimento para Ben. Não parece tão significativo, mas no terceiro ato conseguimos entender melhor.
Essas cenas são importantes para a narrativa, para construir um clima cada vez mais tenso para a família para Ben, Louise e Agnes. Mas o importante para o desenrolar da história, e que vai gerar uma consequência, são as cenas de interação entre Paddy e Ant. Aliás Ant, significa formiga em inglês, aquele bicho pequenininho que até uma criança consegue matar, e isso é bem simbólico.
O menino fica o tempo todo tentando comunicar alguma coisa para a Agnes mais não consegue. Algumas vezes impedido por Paddy, que fica naquela linha tênue entre ser um pai dedicado ou um pai rigoroso, que exige demais do filho.
Por fim, vale destacar um diálogo entre Paddy e Ben quando eles estão caçando. A frase do Paddy é uma metáfora do que ele mesmo está fazendo com Ben e a sua família “O que me dá mais prazer é atrair a presa para a armadilha. Mais do que fazer a refeição depois.”