27.3 C
Manaus
29/03/2025
Portal Castello Connection
ArticulistasMarcos De Bona

O Quarto ao Lado – Amizade e Morte no primeiro filme estadunidense de Almodóvar

Foto: Reprodução

The Room Next Door
Drama

Roteiro e Direção: Pedro Almodóvar.
Baseado no livro de Sigrid Nunez.
Com Tilda Swinton, Julianne Moore e John Turturro.

Depois de muitos anos afastadas, as amigas Ingrid e Martha, se reencontram. Martha está com câncer e faz um pedido surpreendente para Ingrid.

Pela primeira vez em sua carreira, Almodóvar, faz um filme que se passa nos Estados Unidos, todo falado em inglês. E para isso conta com excelentes performances de Julianne Moore e Tilda Swinton, além de uma belíssima participação de John Turturro.

O Quarto ao Lado é uma adaptação do livro What Are You Going Through. Da escritora estadunidense Sigrid Nunez.

Esse texto não vai ter spoiler, se bem que esse não é o tipo de filme que vai ter um final surpreendente. Aliás, costumo dizer que esse filme é a prova de spoiler. Porque o roteiro já anuncia o seu próprio final, pela situação que é colocada diante de nós, não há como imaginar um desfecho diferente. O mais importante são as situações vividas pelas duas protagonistas enquanto ambas esperam por esse desfecho.

Almodóvar, no começo da sua carreira, gostava de fazer comédias. E ele fez ótimas comédias como Kika, Maus Hábitos e Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos. E nesses filmes, ele colocava os seus personagens nas situações mais insólitas e mais absurdas possíveis.

Depois ele passou para os dramas. Em que os personagens, pessoas comuns, vivem dramas de pessoas comuns. O Quarto Ao Lado segue essa mesma linha, cujos melhores exemplos são Tudo Sobre Minha Mãe e Fale Com Ela. O grande encanto desse filme é que apesar da história ser muito poderosa e muito intensa, as personagens são pessoas absolutamente reais.

É possível se colocar no lugar de cada uma delas e entender perfeitamente seus conflitos internos. Ficamos pensando o que faríamos diante daquelas situações, se agiríamos da mesma forma, ou faríamos o contrário. E não são situações nada fáceis de resolver.

PRIMEIRO ATO

Geralmente um filme tem apenas um protagonista. Mas esse é um caso mais raro, em que há duas personagens principais.

Primeiro somos apresentados à Ingrid. Um dos motivos para ela ser a protagonista é que acompanhamos a história de seu ponto de vista. Ingrid é uma escritora que está dando uma tarde de autógrafos. Ela trata muito bem as pessoas que estão ali e faz questão de atender a todos. O que já revela uma característica fundamental da personagem. Ela é uma pessoa amável, uma pessoa do bem, que está sempre disposta a ajudar. E outro ponto que reforça que ela é a protagonista é que o incidente incitante acontece justamente com ela.

INCIDENTE INCITANTE

Uma das pessoas que chega para pedir um autógrafo é uma antiga amiga que fala sobre a Martha, outra amiga em comum. E essa pessoa conta para a Ingrid que Martha está com câncer.

O Incidente Incitante, 99% das vezes é algo que acontece ao protagonista. A partir daí ele ou ela vai tomar uma atitude diante do que aconteceu. Então Ingrid recebe a informação de que a Martha está doente, e de acordo com as características do seu personagem, ela vai visitar a amiga no Hospital.

As duas amigas começam a conversar. E o principal tema da primeira conversa é a filha de Martha. Martha conta para a Ingrid, de uma forma muito franca e honesta, que ela e a filha não se dão bem, e isso acontece porque a filha nunca conheceu o próprio pai. Quando Martha relata esse fato, essa passagem de sua vida é ilustrada num flashback.

O principal tema do filme é a morte, a finitude. Que sempre vem à tona quando alguém tem uma doença terminal. E para fazer essa reflexão o filme faz vários flashbacks para contar a história de vida de Martha. Essa é uma razão que indica que a Martha também é protagonista.

Já a perspectiva da Ingrid é sempre no presente. Os únicos momentos revelados de seu passado, são memórias compartilhadas com Martha. Como um namorado que ambas tiveram em comum.

Martha passa a visitar a Ingrid várias vezes. As duas estreitam seus laços, e voltam a ficar bastante próximas. Então acontece o que a gente pode chamar de um complemento do Incidente incitante. Martha faz um pedido para a Ingrid, que vai significar uma mudança mais drástica na história e vai desencadear o segundo ato do filme.

Ela acabou de descobrir que o seu câncer não tem cura, que ela tem pouco tempo de vida, e conta para a Ingrid que vai simplesmente desistir do tratamento. É claro que a Ingrid fica um pouco chocada com a notícia, mas o pior ainda está por vir.

Martha comprou uma pílula na deep web, que ela vai usar para fazer uma eutanásia, ou seja, pôr fim à própria vida. Ela está decidida a fazer isso. Mas não quer estar sozinha nesse momento, e por isso convida a Ingrid para elas passarem juntas os últimos dias de sua vida.

Uma das principais características do protagonista é definir os rumos da história. É ele quem toma as decisões que vão afetar a vida dos outros personagens. Assim como a Martha acaba de fazer.

Mas outra característica importante é que o protagonista passa por um arco de transformação, também chamado de arco de personagem. E é Ingrid, na situação em que é colocada, quem tem que superar o trauma que ela tem com a morte, que inclusive é o tema do livro que ela acabou de escrever.

Então nós temos o filme contando a história de vida da Martha. E Martha conduzindo a história. Mas o filme é narrado do ponto de vista da Ingrid e é a Ingrid que passa por um arco de transformação. Portanto fica claro que temos duas protagonistas.

SEGUNDO ATO

É certo que a Ingrid fica um pouco abalada. Mas vamos lembrar que ela é uma pessoa do bem, muito compreensiva e está sempre disposta a ajudar. Portanto, de uma forma muito corajosa, ela aceita essa difícil missão. E o segundo ato do filme vai se passar em uma casa em Woodstock, nos arredores de Nova Yorque, onde as duas amigas vão desfrutar de seus últimos dias juntas aqui na Terra.

Há duas passagens muito interessantes no segundo ato. A primeira é quando Ingrid reencontra o Damian, aquele namorado que ela teve em comum com a Martha, vivido por John Turturro. Ele se tornou um ambientalista e vive de dar palestras sobre como o ser humano está destruindo completamente o nosso planeta. Ele se tornou um sujeito bastante pessimista, rabugento e até um pouco amargurado. Ele diz para a Ingrid que já não tem mais motivação para dar aquelas palestras.

E Ingrid revela outra vez aquela sua personalidade do bem, mais otimista, mais positiva. Ela fala para o Damian que a vida está aí, que devemos aproveitar, e viver o presente da melhor forma possível.

Nesse ponto o filme faz uma metáfora muito interessante comparando a situação da saúde de uma pessoa que está com câncer com a “saúde” do planeta, que segundo o Damian, também está em estado terminal. Assim temos a exposição de 3 pontos de vista diferentes. Damian, está tão preocupado com o futuro, que não vive o presente. Ingrid faz questão de viver o agora, está sempre no presente, e por isso não vemos nada sobre seu passado. E Martha não tem futuro, pois está prestes a morrer. Por isso revisita o passado, mas também não deixa de viver o presente.

A outra passagem é sobre como a Martha lida com o câncer. Ela fala sobre como a sociedade exige que a pessoa seja uma guerreira, uma lutadora e enfrente o câncer como se ele fosse um vilão de história em quadrinho. E quando a pessoa vence o câncer, é tratada como um super-herói. Mas ela argumenta novamente que tem o direito de decidir os rumos da sua vida. Podemos concordar ou discordar, mas de qualquer forma é uma reflexão muito poderosa.

E no final das contas, o grande vilão do filme não é de carne e osso, personificado em um personagem. O grande vilão é a morte, que mais cedo ou mais tarde, todos teremos que enfrentar.

Relacionados

Lançamentos de Cinema da Semana (27/03) – Dois filmes de ação e um filme bonito!

Marcos De Bona

Milton Bituca Nascimento – A grandiosidade da obra de Milton Nascimento em um doc com altos e baixos

Marcos De Bona

UM COMPLETO DESCONHECIDO – O começo da carreira, a rebeldia, a genialidade, a atitude contestadora e antissocial de Bob Dylan

Marcos De Bona

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Entendemos que você está de acordo com isso, mas você pode cancelar, se desejar. Aceitar Leia mais