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25/02/2025
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Marcos De Bona

EMILIA PÉREZ – Um roteiro fraco e uma visão europeia e preconceituosa da América Latina

Foto: Divulgação

Musical/Drama/Ação
Roteiro e Direção: Jacques Audiard
Com Karla Sofía Gascón, Zöe Saldaña e Selena Gomez
França, 2024

Vídeo: 

Um perigoso traficante forja a sua morte e vira uma mulher trans. E o segundo ato do filme se arrasta mostrando uma visão europeia e preconceituosa da América Latina.

Emilia Pérez espantou o mundo ao receber 13 indicações para o Oscar, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Filme Internacional (concorrendo com Ainda Estou Aqui), Diretor (Jacques Audiard), Atriz (Karla Sofía Gascón), Atriz Coadjuvante (Zöe Saldaña), Roteiro Adaptado (Jacques Audiard), Cinematografia, Montagem, Trilha Sonora, 2 indicações em Canção Original, Cabelo e Maquiagem e Som.

É importante salientar que, apesar de praticamente toda a história se passar no México, trata-se de um filme francês, nacionalidade de seu diretor e de Boris Razon, autor do livro Écoute, no qual o roteiro foi baseado.

PRIMEIRO ATO

Depois de uns 15 minutos de filme começo a me perguntar por que Zöe Saldaña foi indicada a atriz coadjuvante, se Rita, sua personagem, é a protagonista. Depois eu percebo que Emilia Pérez, personagem da Karla Sofía Gascón, assume o protagonismo, mas apenas no segundo ato.

Mas no primeiro ato, que dura cerca de 40 minutos, a protagonista é Rita, apresentada como uma advogada frustrada, escrevendo a tese da defesa de um homem acusado de estupro. De vez em quando ela canta e dança. O filme apresenta números musicais muito bons, mas também tem músicas fracas em momentos desnecessários.

Temos, portanto, uma apresentação de personagem bastante eficiente. Na verdade, todo o primeiro ato funciona muito bem.

INCIDENTE INCITANTE

Como Rita é a protagonista do primeiro ato, o incidente incitante acontece com ela. A advogada
recebe uma ligação misteriosa e marca um encontro com alguém misterioso.

Nesse momento uma cena me chamou a atenção, na verdade um take específico. Enquanto Rita está esperando numa banca de jornal, ela olha para o lado e a câmera se torna subjetiva, ou seja, assume exatamente o ponto de vista da personagem. E ela vê vários jornais daqueles bem sensacionalistas, com fotos chocantes de crimes, pessoas mortas etc. É aí que começa a visão estereotipada do México como um país violento, visão que pode ser estendida à toda a América Latina.

O personagem misterioso é o perigoso traficante Manitas. Então vemos a sinopse já tão conhecida. Manitas oferece um caminhão de dinheiro para a Rita, para ela ajudá-lo a forjar sua morte e se transformar em Emilia Pérez. Inclusive fazendo a cirurgia de mudança de sexo.

O primeiro ato se encerra de uma forma eficiente. O plano é tão bem-sucedido que até a mulher e os filhos de Manitas, que foram morar na Suíça, pensam que o traficante está morto.

SEGUNDO ATO

Se o primeiro ato funciona muito bem, aqui começam os problemas do roteiro. Depois de quatro anos, Emilia Pérez, que está morando em Londres, volta para o México para morar junto com a sua ex-mulher e com os filhos. Ela finge ser uma prima de Manitas. É até bonito que um dos filhos reconheça o cheiro do pai em Emilia Pérez. Mas Jessi, sua ex-mulher, em nenhum momento sequer desconfia da real identidade de sua nova anfitriã.

Então o roteiro se arrasta sem saber para onde ir. Numa tentativa de redenção, Emília usa a sua fortuna e abre uma ong para encontrar pessoas desaparecidas, vítimas da violência. Se tornando assim bastante querida e conhecida. No mais, a protagonista se envolve com uma outra mulher, convive com os filhos, Jessi começa a se envolver com outro homem. Mas não acontece nada de muito relevante, ou atrativo.

O roteiro desperdiça oportunidades óbvias de tornar-se mais eficiente. Um traficante rival poderia descobrir que Manitas está vivo. A polícia poderia descobrir que Manitas está vivo. Alguém poderia investigar a origem do dinheiro de Emilia Pérez ou mesmo de Rita. Não, nada disso acontece. Ou seja, o filme fica desinteressante porque não há conflito, não sentimos uma ameaça real à protagonista. Em linguagem de roteiro, não há um Stake, aquela situação que nos prende na cadeira porque a qualquer momento algo pode dar muito errado.

Fora isso o filme tem suas qualidades. Alguns bons números musicais, boas coreografias, uma boa fotografia, boas atuações de Karla Sofía Gascón (aqui não vou entrar nas polêmicas do Oscar) e Zöe Saldaña. E evidentemente um discurso inclusivo, de respeito à diversidade de gênero, um pouco panfletário, mas eu entendo que nessa hora precisa ser panfletário mesmo.

Porém o que mais me incomodou foi retratar o México como um país extremamente violento. Já no primeiro ato há a cena com os jornais sensacionalistas e a alusão ao tráfico de drogas. E o segundo ato fala muito sobre desaparecidos por causa da violência. Não vou negar que o México seja um país violento, mas me soou muito uma visão europeia e estereotipada da América Latina como um lugar exótico e perigoso. Ou seja, uma visão preconceituosa mesmo.

Para não dizer que o roteiro segue na pasmaceira até o fim, lá no final do segundo ato temos um plot twist e o filme volta a ter alguma emoção. O terceiro ato é bom e o final, ainda que não tenha sido uma grande surpresa, é satisfatório.

Enfim, a diferente repercussão de Emilia Pérez na Europa e EUA (muito sucesso no Festival de Cannes e 13 indicações ao Oscar) e na América Latina, onde alguns críticos até elogiaram, mas o público em geral não o recebeu bem, é muito significativa. Os latinos não gostaram nem um pouco da forma como foram retratados pelos europeus, que, provavelmente por uma visão realmente preconceituosa, adoraram o filme.

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